O pipoqueiro Ademir Alcântara, de 60 anos, definia a própria vida como estável e tranquila. Trabalhava na Praça Mauá, vendendo pipocas para os turistas brasileiros e estrangeiros que chegavam nos cruzeiros que lotavam o Rio de Janeiro no verão.
Veio a Covid, a clientela sumiu e as mercadorias subiram de preço. Quebrado financeiramente, ficou sem ter onde morar e se viu obrigado a buscar um abrigo da Prefeitura do Rio, engrossando uma triste estatística: o número de acolhimentos de idosos aumentou 16% na rede municipal com a pandemia. Uma tendência de alta que se mantém em 2021.
No ano passado, foram realizados 4.794 acolhimentos de idosos nas 13 unidades da Prefeitura do Rio que fazem este tipo de atendimento. Em 2019 o número foi de 4.126. Foram 668 acolhimentos a mais.
Na unidade onde Ademir está, só em janeiro 109 idosos foram encaminhados para receber ajuda. Em março do ano passado, quando a pandemia chegou ao Brasil, foram 79 atendimentos de maiores de 60 anos (veja mês a mês na tabela abaixo).
demir hoje vive na Central de Recepção de Idosos Carlos Portela, na Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio, o segundo maior centro de atendimento de idosos da rede da cidade, onde o G1 conversou com acolhidos.
“Eu perdi tudo. Eu tinha carroça, tinha empregado, tinha uma vida relativamente boa (…) Quando chegou essa epidemia, caiu tudo, caiu tudo. A última vez que eu vendi pipoca na Praça Mauá foi em dezembro. E eu vendi R$ 100. A mercadoria aumentou muito. O milho de pipoca chegou a R$ 6. O óleo, que era R$ 2,70, foi para R$ 10. O bacon aumentou muito. Tudo aumentou”, conta Ademir.
Citado pelo pipoqueiro, o óleo de soja foi o grande campeão das altas de preços no ano de 2020, como mostraram os dados da inflação oficial do país divulgados em janeiro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ademir passou a viver a maior de seus 25 anos de profissão nas ruas do Rio. Para pagar as contas, teve que se desfazer do carrinho que usava para trabalhar.
“Você vai perdendo a sua essência de trabalho e até a vontade de trabalhar e vai se endividando e chega um ponto que você tem que vender sua mercadoria de trabalho.”
Os problemas financeiros vieram acompanhados de problemas de saúde. Passou mal no começo de fevereiro e ficou 18 dias internado. Chegou aos 60 anos de idade no leito do hospital. Medicado de uma infecção na pele, atualmente se locomove em uma cadeira de rodas.
Abrigado, Ademir sonha em recuperar a saúde e conquistar a independência novamente, com um novo carrinho de pipoca para voltar a trabalhar nas ruas da cidade.
Ademir sonha em voltar a trabalhar como pipoqueiro no fim da pandemia da Covid-19 — Foto: Cristina Boeckel/ G1
Ademir sonha em voltar a trabalhar como pipoqueiro no fim da pandemia da Covid-19 — Foto: Cristina Boeckel/ G1
“Sem demagogia nenhuma, a gente aprende a vida toda a trabalhar. E viver em um ambiente desses, não vou dizer que é ruim, mas não é o sonho que eu sonhei para a minha velhice. Mas eu tenho fé em Deus que as coisas vão acabar.”
Aumento da pobreza
A secretária de Assistência Social do Rio de Janeiro, Laura Carneiro, destaca que é visível o aumento da pobreza durante a pandemia e que atender o aumento da demanda é um desafio.
O Censo de População em Situação de Rua 2020, realizado entre 26 a 29 de outubro do ano passado, pesquisou 7.272 pessoas. Destas, 752 pessoas responderam ter ido para as ruas depois do início da pandemia da Covid-19 – mais de 10%.
“Como é que a gente consegue, com a estrutura que a gente tem na secretaria, atender uma gama de pessoas que sofre em função do aumento da pobreza absoluta. E um destes problemas é, claro, a população em situação de rua. E aí leia-se não apenas a população em situação de rua, mas a extremamente vulnerável que a gente também tem a obrigação de atender na secretaria”, diz a secretária.
Criação de abrigos permanentes é estudada
Apesar de a maior parte dos entrevistados no censo ter idade entre 18 e 49 anos, Laura Carneiro afirma que os idosos estão entre os grupos mais vulneráveis, ao lado das crianças e adolescentes.
A prefeitura estuda a criação de um lar permanente para idosos em situação de vulnerabilidade. Atualmente, o poder municipal conta com centros de acolhimento e reinserção.
Maioria das vítimas
A primeira vítima da pandemia no estado era uma idosa, de 63 anos. Atuava como empregada doméstica e, ao que tudo indica, se contagiou com a patroa, que esteve na Itália e foi infectada.
As pessoas com mais de 60 anos são 77,24% das 33.712 mortes pela Covid-19 registradas até 6 de março no Rio de Janeiro, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde.
Na faixa etária de 60 a 69 anos, eles eram 23,09% das mortes. No grupo com idade entre 70 a 79 anos, eram 26,17% do total.
Pessoas com mais de 60 anos são 77,24% das 33.712 mortes pela Covid-19 no RJ — Foto: Infografia: Anderson Cattai/ G1
‘Saudade dos amigos que se foram’
Jucely Abreu, de 65 anos, também passou por um revés ao longo da pandemia. Ela trabalhava há nove anos como encarregada de obras em uma firma até ser mandada embora em julho do ano passado. Os sócios majoritário e minoritário morreram de Covid.
Ela conseguiu se manter até dezembro, quando percebeu que não conseguiria pagar mais o aluguel. Com medo de ser despejada, decidiu vender todos os móveis que tinha em casa para quitar dívidas e buscou auxílio.
Jucely Abreu sonha em conseguir pagar um aluguel novamente — Foto: Cristina Boeckel/ G1
Além dos patrões, ela perdeu outros colegas de trabalho e amigos.
“Mas é muito difícil mesmo. É uma coisa, assim, que arrepia. Você lembra, sem contar a saudade dos amigos que se foram. Fora os dois sócios, mas os amigos também faleceram com Covid. Pessoas que você dizia não, impossível, são pessoas saudáveis, robustas, um touro, não pega”, lamenta Jucely.
Ela espera a liberação de um benefício para novamente conseguir pagar um aluguel e sair do abrigo. Mas, segundo ela, as marcas que a Covid deixou na vida dela são maiores do que a perda dos bens.
“De vez em quando eu choro escondida. Porque não é fácil.”
Fim do auxílio emergencial
Carlos Renato encontra dificuldade para encontrar trabalho por causa da idade — Foto: Cristina Boeckel/ G1
Ao longo da vida, Carlos Renato, de 60 anos, teve muitos trabalhos. A pandemia acentuou as dificuldades que já vinha encontrando em arrumar emprego.
“Desde 2015, 2016 eu já comecei a enfrentar dificuldades e eu percebia que era em função da idade. A concorrência, a oportunidade de vagas. Você vai em uma empresa. Você tem 60 anos e a pessoa que tem 35 prevalece”, disse.
O auxílio emergencial ajudou a dar um respiro nas contas, mas com o fim do benefício, ele precisou buscar ajuda.
“Com o auxílio eu estava conseguindo me manter. Eu morava no Recreio na época. Pagava um aluguel. Começaram a pagar R$ 300 e eu fui para a Zona Oeste, mais distante, mas estava conseguindo me manter. Quando foi suspenso, em dezembro, eu não tinha mais como me manter. O auxílio estava me ajudando, eu fazia alguns trabalhos informais, mas muito pouco devido a pandemia. A pandemia fechou muitas frentes de trabalho informais, então dificultou mais ainda.”
O pipoqueiro Ademir também chegou a receber o auxílio e usou o dinheiro para quitar parte das dívidas.
A secretária de Assistência Social afirma que caso a caso é estudado sobre os idosos que chegam à rede da prefeitura, mas que o fim do auxílio emergencial teve um impacto no sistema.
“Em janeiro, quando para o auxílio emergencial, você já sente de novo o aumento. Mesmo assim, de 2019 a 2020, tivemos um aumento”, afirmou Laura Carneiro.
Além dos idosos e menores de idade, já citados pela secretária, ela cita que famílias inteiras têm buscado atendimento.
Com déficit de recursos, a secretaria busca parceria com empresas privadas para a reforma dos abrigos que já existem na rede municipal.
Sonhos
Mesmo com as dificuldades, os idosos abrigados não deixam de sonhar.
“Eu quero voltar a ter a minha vida e volta, trabalhar, ter a minha carroça de pipoca. Só isso”, diz Ademir.
Jucely quer ter seu cantinho novamente: “Tendo o dinheiro fixo do aluguel, o resto é sem problemas. Eu posso pedir a saída daqui. Sem chance de voltar”.
Carlos Renato quer voltar a ter um emprego com carteira assinada.
“Meu sonho? Eu continuo sonhando com trabalho. Eu gosto de trabalhar, de ser um profissional, de ter a minha vida independente, sustentar a minha vida. Mesmo numa faixa etária de idoso eu, graças a Deus, ainda tenho saúde. Alguns sonhos, mas não me impede. Meu sonho é esse, trabalhar e ter minha dignidade, minha vida, meu lugar”, finalizou.
Fonte: G1